Thursday, March 29, 2012

Vermelho (I)


Sangra-me os sentidos,
Como se fosses noite devastada
Invadindo os silêncios da minha imensidade,
E toca-me a alma
Como mil mãos que deslizassem
Sobre o meu corpo de impenetrável torpor.
Prende os meus gestos
Na mística miragem do azul rasgado
Dos teus olhos cegos
E penetra no mais recôndito de mim,
Qual luz de abismo
Abandonada aos desertos do olhar.

Sente-me
Em cada grão da poeira de existir
E encontra o meu espírito no teu corpo,
Como uma voz que se envolve,
Sem querer,
Na suave sedução dos meus sentidos,
Espelho de uma imagem sem reflexo
Onde me vejo,
Nua de alma e corpo devastado.

Percorre-me
No ausente labirinto dos meus olhos,
Como lábios de morte
Que me envolvessem no seu êxtase final,
Fúnebre essência de um destino
De eternamente anunciada morte,
Prisão infinita de perene adiamento.

Rasga-me as veias
De onde se esvai o fluido dos meus sonhos
E abre aos desertos nadas do meu nada
O secreto sentido do meu ser,
E beija o sangue que sai do meu corpo,
Qual melodia de alma estilhaçada
Feita de miríades de vidro
E escuridão.

Sangra-me cada sopro de vontade,
Cada desejo de indefinição,
Cada palavra que me brota da alma
E se arrasta nas trevas do infinito…

E leva,
Na absoluta submissão do eterno nada,
Aquilo que foi teu, porque roubaste,
A rasgada paixão que condenaste…
A minha redenção…
…que profanaste.

Wednesday, March 21, 2012

À Morte da Musa

Para ti, que ousaste ter asas de fogo e voar até ao rubro sol da inspiração. Que semeaste universos com o ânimo de uma alma erguida ao alto e as mãos manchadas com uma tinta feita do teu próprio sangue. A ti, cujos sonhos o mundo desfez – se sonhos te atreveste a ter – e cuja inspiração desfaleceu nas correntes de uma palavra cruel. Tu que esperaste, mas que nunca acreditaste. Que quiseste, mas que nunca conseguiste… Esta é a tua última história.
No princípio eras tu e não querias muito. Bastava-te um lugar, um olhar atento ao que de ti tinhas para partilhar. Querias somente ser. Ser a voz dos mil mundos que te habitavam, de outras vidas tão longínquas, mas tão tuas… Nasceste para o imaginário com um olhar abrangendo tudo o que querias contar. Mas as portas estavam fechadas e o mundo – o teu mundo – não sabia ser teu.
Esqueceste, então, e seguiste pelo traçado de outros sonhos. Tudo falhou, mas tinhas ainda a força para voltar a tentar. Alimentava-te a esperança de ser, um dia, algo mais, mais que o fantasma de um ideal quebrado, mais que a luta vencida que todos rasgam, mas ninguém vê.
Por mil anos de silêncios andaste por um mundo teu a que não pertencias. E, um dia, a luz da palavra nasceu. Um incentivo só bastou para te iluminar de esperança. Alguém via através das tuas sombras. Ainda estavas lá. Ousaste, então, sonhar mais uma vez e as almas que viviam dentro da tua desabrocharam em cantos e caminhos, aventuras e sonhos que eram, ainda e sempre, tu. Mais uma vez, ousaste ser perante o mundo. Mas o castigo não se fez esperar.
Mãos erguidas clamaram pelo teu sangue. Ferozes gritos exigiram o teu silêncio. E tu, frágil reflexo de uma esperança, tentaste aguentar de pé os golpes com que te feriam, manter a tua voz aberta ao mundo. Mas não tinhas a força necessária – nunca a tiveste. Sangravas o sangue que te exigiam, mas, enquanto esperavas que parasse, já o silêncio se instalava em ti. Também tu conhecias o fracasso. Sabias não haver mais por que lutar.
Voltaste, enfim, as costas a esse mundo onde o silêncio não bastava para sobreviver. Partiste, ciente de que abandonavas a melhor parte de ti, mas incapaz de continuar de pé ante feridas mortais. Longe era o teu lugar, longe de tudo… Só na renúncia poderias prosseguir. Da torre do sonho afastaste os teus passos para receber o beijo do fracasso. E morreste, por fim, para tudo o que te definia.
Hoje, és o nada que sopra nos ventos do adeus, a despedida que nunca dissemos. A história jaz por terra e nós com ela. Fica-nos só o silêncio que aceitámos como mortalha para os desígnios do que fomos. O vazio. O abismo que em nós dilata pensamentos e murmura histórias que nunca poderemos partilhar. Hoje é isto que somos à luz da vida. E a vida… já não mora dentro de nós.
                             

Thursday, March 08, 2012

Pegadas de Fumo

Vulcânicos rubores passaram por esta estrada
De sangue morto
E as margens da última artéria transbordaram
Para lá das muralhas da consciência.
Secreto, o silêncio vogava pelas ondas do mar exangue,
Deixando pegadas de fumo
Sobre os ardentes mantos da aurora boreal.

Longe, a fortuna cantou elegias ao espelho
Da cegueira abençoada
Com o veludo dos túmulos renascidos
Onde a noite pintava cintilações de magia
Sob o manto cruel do despertar.

Solene, a estátua vigia a ruína esmorecida
Nos ossos da catedral,
Fantasmagórico olhar sobre o corpo do templo
Que a si próprio se contempla.
A fusão voltará a lavrar a hecatombe desses corpos
Em ardente sacrifício
E a lentidão dos compassos da última marcha
Voltará a cantar a uma só voz.

E, além do tempo, o grito dos morcegos
Virá para derrubar as tempestades
Na comunhão das muralhas de além-vida.

Thursday, March 01, 2012

Regras

Estende as mãos ao amplexo do nevoeiro
Que vela o soberbo rosto da sarça ardente
Envelhecida por seiscentas encarnações.

No silêncio das trevas que envolvem a mão do deus,
Ele é a esfinge deitada no Sinai,
O esboço esmorecido e suplicante
Que se alonga até ao leito que consagra a divindade
Na saturnina pele dos ancestrais.

É como um grito
O cosmos dos mandamentos traçados na sua voz
De regras e transgressão.

A mão da montanha que desce sobre as efígies
Do povo exilado
Onde ele é líder nas trevas e no porvir
Do fogo que o investiu.

A mãe que chora
Nos olhos do apocalipse que se derrama
Unge as cinzas da criação.