A tela nua estendia-se, imaculada, diante dos seus olhos entorpecidos, cansados depois de tantas vezes terem aberto aos homens as imagens que floresciam no seu mundo. Aquele era o seu derradeiro dia, o último tributo prestado pelo seu corpo enfraquecido, e, quase tacteando a paleta e os pincéis que, como se ansiassem pelo seu toque, repousavam prontamente a seu lado, o velho pintor fitava, com olhos de melancolia, o ponto zero do seu último acto criador.
O negro… A nocturna obscuridade das paredes vencidas da imensidade, onde os mártires e os moribundos contemplam, com olhos cegos, o fúnebre esplendor do seu derradeiro momento. A sinistra noite de todos os sonhos e de todos os silêncios, onde apenas o laivos de uma dispersa neblina se atrevem a respirar, na solene noite despida da cintilação das estrelas e do melancólico brilho do luar, como um funéreo cântico de trevas que se elevasse em tributo aos espíritos do outro mundo.
Levemente, o pintor tacteou os pincéis, buscando neles uma espécie de telepatia, capaz de criar na sua mente envelhecida a imagem que procurava. Negro como a sombra que se espraiava nas suas imagens, o vulto da morte parecia já debruçar-se, soturno e silencioso, sobre o seu corpo fragilizado, tocando-o com a carícia do fim dos tempos. Chegava ao fim, pois, o seu tempo, e, quando chegasse ao pórtico do além-vida (se algo existia, na verdade, para além da vida), queria levar nos seus pensamentos a memória daquela derradeira imagem, capaz de reflectir, em sua defesa pelo orgulho e pela inútil vaidade em que vivera, a sua cintilação dispersa entre os rasgos da eternidade.
Púrpura dos quebrados e dos vencidos… O estandarte que se agita nos ventos da tempestade, ao longe, tão distante que as mãos que o procuram não o conseguem alcançar. Da cor dos sacrificados, dos imolados a um destino que, na sua derradeira acepção, não passa de viver e morrer, o estandarte oscila nos braços de um vento agitado, rasgado pelo furor das batalhas vencidas e pela fúria de mil lâminas cravadas sobre os corpos dos derrotados. Púrpura de fogos carbonizados, imolados no altar da derradeira controladora do mundo, capaz de extinguir, como no último tremular de uma vela, o sopro que animava as modulações do pó.
Desenvolvia-se a imagem por dentro dos seus pensamentos e os pincéis agitavam-se nas suas mãos, como se tivessem vontade própria. Queriam criar, imortalizar em objecto as forças que sussurram nos confins da imaginação. E, naquela noite final, fatal como a sombra de um destino iminente, o pintor não negaria aos instrumentos da sua obra o mais profundo desejo dos seus corações de madeira. Antes que a mão do silêncio o derrubasse, o seu legado deveria ficar eternizado perante os olhos do mundo, como ele sempre sonhara, caminhando incessantemente pelas sendas do orgulho, sem alcançar mais que as feridas que o consumiam. Ali, contudo, enquanto a imagem ganhava vida na sua totalidade, sabia que não seria desprezado, porque a sua criação, a última, a definitiva, não serviria os olhos do mundo, mas os da própria vida. Talvez, os do próprio Deus…
Escarlate… O trono rubro de sangue, abandonado debaixo dos céus à espera do regresso do seu rei absoluto. Traçado em petrificadas línguas de fogo, como se o fulgor do infinito oscilasse na nitidez daquele vazio morto, onde a suprema figura do seu vulto imobilizado parecia reinar em nome do seu ocupante. Trono vazio, ainda, esquecido sob a iminência da tempestade, mas sempre fiel e à espera, sempre vazio na sua imobilidade, preso pelas correntes de uma essência moribunda, até que o manto do infinito se dignasse, um dia, roçar a rubra pedra do seu corpo ofertado em devota imolação.
Um vago esboço de sorriso, pétreo como a sua própria existência, aflorou aos ressequidos lábios do pintor. Tinha, agora, uma imagem perfeitamente nítida vagueando por entre os labirintos da sua mente, um cenário capaz de tocar até o coração dos anjos, talvez, mesmo, o dos deuses conhecidos e desconhecidos. Faltava-lhe, ainda assim, um fragmento de brilho que completasse a sua derradeira criação. Um traço, por mais simples que fosse na sua timidez, que lhe reflectisse a identidade nas brumas da sua mais negra hora.
A foice… O prateado fulgor do instrumento de morte depositado ante os pés do trono, como se oferecido por mãos invisíveis ao espectro de um senhor também inalcançável. O braço que cortava as ligações do inefável, separando a mente desperta do espírito eternamente adormecido, a mão da imensidade descida à voz dos reinos inferiores. Serva da eternidade e senhora da vida, a invisível mão da morte prostrada perante o imortal. Cruzada sobre o chão obscurecido com as sangrentas manchas que lhe marcavam o toque, vermelhas como a tímida estrutura do pincel que, quebrado, se enlaça com o corpo da alma.
Uma breve lágrima brotou no azul apagado dos olhos do pintor, enquanto contemplava, no silêncio do seu momento criativo, quase como se lhe fosse permitido ver, pela última vez, sem barreiras nem limitações, todo o obscuro brilho da sua derradeira criação. Talvez, depois da partida, viesse a sentir saudades do mundo que, dentro de momentos, deixaria, mas, apesar do medo e da relutância, sabia que, do alto da eternidade ou dos confins do abismo, os seus olhos nunca deixariam de velar pelos seus herdeiros, filhos de tela e de tinta, mas sempre infinitamente amados. E aquele quadro, aquela última imagem, traçada em si e por si, com o sangue de todos os seus dias…
Este é para ti, morte. É teu. Agora podes vir buscar-me.
3 comments:
"Rasgos de Eternidade" fantastic post.
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...uma breve lágrima brotou...
"estavas tão linda, Inês, posta em sossego..."
belíssimo texto!
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