Passei todos estes anos enganado. Todos os momentos de sonho, de imaginação e de esperança não foram senão fantasmas destinados a coroar de sangue este momento, o adeus da voz que me dormia no corpo, mas que já não está apenas ausente, mas morta dentro de mim.
Naquele tempo, formavam-se multidões à minha volta, vindos, por vezes, de longe para ouvir as histórias que só eu sabia contar. E eu era a voz de todas as miragens, de um horizonte mais além que todos os mundos, a mais fantástica lenda do reino. Eu que, num reino distante, nascera lorde, sofrera o exílio pelas mãos de um tirano e acabara por me arrastar, sem mais nas mãos que as cinzas da minha imaginação, até às sombras da cidadela onde os mágicos me haviam acolhido.
Mesmo aí, quando eu julgava ter encontrado um novo refúgio, a redenção para os pecados que haviam operado sobre mim, eu não era senão o prenúncio da fatalidade, uma profecia destinada a morrer pelas armas do meu próprio espírito. É que eu sonhava com asas de anjos dispersas pelos céus, mas não sabia que eram mais que os meus vigias silenciosos. Eles tinham vindo para me buscar.
O pânico invadira a cidadela. Não era eu, afinal, o único a ver a figura dos meus carcereiros e, rapidamente, a culpa do estranho fenómeno caíra sobre o único estrangeiro do lugar, o mesmo que, durante tantas noites, eles haviam escutado com devoção, sem saber que não era mais que um condenado dos céus. Entregaram-me sem remorsos, assim que o mensageiro dos anjos se lhes dirigiu. Nem uma ameaça, nem um traço de persuasão se revelou necessário. Descartaram-se de mim com um simples “Levai-o. Não nos pertence.” e retomaram a sua rotina sem um último pensamento para mim, para o destino a que me condenavam.
E agora estou aqui, no limiar da condenação eterna, e vejo tudo o que sou e tudo o que me julgava. Condenado por orgulho, deixara a minha missão porque sonhara ser um contador de histórias e descurara os meus superiores por estar demasiado centrado na minha própria existência. E, por breves momentos, encontrara no mundo dos mortais a realização do meu sonho, a sublime cintilação dos olhos que me fitavam enquanto eu lhes narrava as múltiplas viagens que me brotavam da imaginação. Claro que eles não sabiam que o reino que me exilara era o dos céus, que a minha nobreza era a das potestades e que eu só via o meu rei como tirano porque me julgava capaz de criar mundos para além do mundo, mas que esse sonho me era constantemente negado.
Como poderia eu saber que o meu senhor não queria senão poupar a minha pobre esperança? Como, se era tão cego que não via que aquele estranho brilho não era pela magnificência das minhas criações, mas apenas porque as julgavam verdadeiras? Não, eu não via que criara uma mentira. Não via que era, afinal, apenas mais um miserável que se julgava merecedor de louvores em terra de ninguém…
Na verdade, não interessa. Fui devolvido ao vazio de onde nasci, ao nada que me constitui e de onde nunca deveria ter saído. A memória, contudo, permanece no éter das minhas partículas fragmentadas, a sombra daquele sonho que, por momentos, foi tudo o que guiou os meus passos. E, nesta hora eternamente repetida, só queria que essa sombra desaparecesse, desfeita em pó como a pedra onde repousam os meus ossos. Queria ser de cinza, como os restos que divagam no vento e que, um dia, foram a débil cabana que me atribuíram na cidadela dos mágicos. E queria fechar os olhos invisíveis que, como relâmpagos rasgando o vácuo, me mostram constantes imagens daquilo que sou… Ninguém perdido no nada, querendo apenas desaparecer.
Cada palavra a sangue e dor marcada num grito de revolta silenciosa... Esta sou eu... A sombra, a noite... O nada.
Sunday, August 02, 2009
Queria Ser de Cinza
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