Friday, September 07, 2012

Lições do Olhar


Nasceu contemplando a espera dos abismos na distância
E o sal dormia-lhe nas veias como um mar.
Tinha nas mãos as manchas da negrura interior
Que lhe repousava nas catacumbas da alma
E a distância sentida na pele dos sonhos que fugiam
No manto da eterna nulidade.

Cresceu de olhos abertos ao vácuo da extinção
Que a preenchia em profecias
E os passos deixaram marcas na lama que amordaçava
O canto que sufocava na solidão.

Viveu com um olhar absorto sobre as palavras do vento
E da água do mar que a convocava
Aos altares do espectro cavernoso
Cujas mãos lhe tocavam elegias no cabelo
E deixavam para trás um suspiro de saudade
Tão ténue como o crepúsculo dos cânticos mudos.

Morreu, por fim, e os olhos ainda fitavam
O deserto dos céus por sobre a vida.

Friday, July 13, 2012

Heresiarca


Contemplo a fé do não ser
Embalada sob o amplexo de névoas e de profecias
E os braços da vela enlaçam o silêncio do meu corpo
Como obstinações de cruz.
Não creio,
Mas tenho os olhos erguidos ao mistério do absoluto
E os braços agitam as cordas rasgando a pele
Nos pulsos do deserto moribundo.
E há mãos de fogo na mordaça do meu grito,
Da voz que nasceu em defesa dos exilados
Mas que se perdeu no desterro
E o tempo contempla as grades da essência que me condena
Na perpétua prisão das chamas

Roça-me os dedos a fuga do compasso de finados,
A morte que apela ao vazio da minha imensidade
E o adeus escapa-me sobre os dedos como voz de divindade
Cujo apóstolo anuncia aos desertos
O desvanecer das horas onde o sonho se dilui.

Morreu em mim a defensora,
A maga dos momentos que afastam o véu dos céus
Ante a renúncia dos condenados,
A fúnebre dispersão dos filhos do Éden
Sobre o silêncio das águas,
E tocam a rebate os sinos da catedral do absurdo
Gritando ao poema deserto nos seus lábios mortos
Que com ela morreu a redenção.

Friday, June 29, 2012

Elegia


Há um nome ancorado no tempo que completa a voz
Como as veias de uma catedral,
O silêncio que jorra por dentro das entranhas do mar
E multiplica os ecos
Até ao infinito som de um grito.

Silentes, os olhos da aurora contemplam o véu
Do horizonte em chamas,
Rasgado pela fúnebre figura do cavaleiro arlequim,
Da figura que regressa,
Espezinhada pelos passos de uma divindade antiga,
Prostrada pela profecia do futuro nada.

A mão completa o sussurro da miragem perdida
No olhar das esferas
E o trono jaz entre as cinzas do império desfalecido,
Como um segredo prostrado na conspiração das horas,
Uma voz amordaçada
Que se afasta entre muralhas destruídas
Soltando ao vento o marulhar do caos.

Há um lamento na trova dos deserdados.
O rei morreu…

Friday, June 22, 2012

De Profundis


Invoco-te dos abismos da dor,
De além da mágoa eterna, imensurável
E espero-te nas trevas, vão senhor
Do campo de batalha interminável.

Exércitos, os teus, são só de amor,
De sonho as lanças da noite indomável,
De lágrimas o teu manto sem cor
E de silêncio a esperança inefável.

Invoco-te com mãos de alva saudade,
Com olhos de vencida liberdade
E com um coração feito de nada.

Chamo-te da razão para sempre morta.
Não passarás, senhor, à minha porta
Para abençoar uma alma condenada?

Thursday, June 14, 2012

Ao Silêncio da Ideia


Na hora em que todas as vozes se calaram
Na pulsação da musa sob o sangue
E os gritos da história que queria ser contada,
Nem que apenas por mágoa, apenas
Por fé,
Surgiram vãos no abismo da procura
A que só o silêncio respondeu…

Quando o sussurro do sonho puxou das armas
Por encontrar à espera as batalhas
Em nome de cada palavra pronunciada,
Quando a razão era de mãos apertadas na garganta
Das aspirações secretas,
Estranguladas sob a opressão das palavras
De carrascos, de juízes, de carcereiros
Sentados à espera de uma alma que pudessem
Arruinar.

Quando, mortas, as ânsias do imaginário
Deram lugar a um tremor no vazio
E a criação se fez fardo na essência do criador
Temente à sombra e à mágoa e ao exílio e ao despertar,
Quando uma voz sussurrante encheu as cavernas
Da imensa ausência de um cárcere interior
- Não era isto o que querias para o teu sonho… -
E a noite imensa era treva igual ao dia
E a eternidade a mesma saga repetida.

Na hora em que os teus dedos se quedaram
Sobre o papel manchado do teu sangue
E das lágrimas vagas da tua alma,
Quando o silêncio tomou posse do trono
Que a soberana musa destronada
Deixou ao vácuo que sobrou de ti.

Friday, June 01, 2012

O Corpo do Olhar


Este é o meu reino. Eu vejo
Esferas no verde de cada floresta aberta
Para me acolher no seu seio. Eu sinto
O aroma das fantasias dispersas na alma
De um corpo pintado a caruma e húmus
No chão. Eu oiço os gemidos
Das feras que divagam na penumbra
Dos predadores. Eu toco a casca
Dos troncos milenares que me cercam
O corpo desorientado. Eu sinto o sabor
Das eras que passaram sobre este campo
Nos lábios febris de sonho. Eu sou…
O que lembro e o que encontro
E o que guardo dentro das casas destruídas
Da minha alma e este lugar
Que é meu, imensamente, eternamente,
Vive comigo como a luz dentro de mim.

Friday, May 25, 2012

Resignação


Venho trazer-te o que é meu.

Um violino onde a noite chora em cordas de diamante
Planando sobre as arcadas de um profeta enlutado
E um corvo que em silêncio fita as chamas devoradoras
Dançando sobre as palavras que semeou sobre o papel.

As portas do sangue ao corpo e à morte em mim.

Venho estender no teu altar a toalha da minha pele
Mutilada pelos cinzentos da resignação total
De quem morre sob a sombra de uma rosa apodrecida
Que foi verso abençoado por todas as cortes do céu
Mas que morre entre as miragens de um olhar exilado.

E o cântico à cruz onde dormem os meus braços
Sangra dentro de mim como um gotejar de labirintos
Por onde o sonho se esvai em carrilhões de loucura
Traçados sobre a canção da pomba sacrificada.

Venho deixar-te o que fui.

Para que encontres no cadáver da entidade que voou
O eco dos espelhos mortos na cintilação do absurdo
E o sonho desvanecido em pétalas de renúncia
Onde as lâminas compõem o macabro da sinfonia
Que se estende ao compasso no final das minhas veias.

Fechados os olhos da esperança à morte do ideal.

Friday, May 18, 2012

Dispersão


Passei,
Qual etéreo murmúrio de tempos áureos
Irremissivelmente mortos,
Fantasma entre sombras de um mundo ausente,
Ilusão de inalcançável esplendor.
Fui mais uma entre os errantes da vida,
Uma outra vagabunda do meu sonho,
Sem abrigo nas ruas da saudade.
Vivi como uma névoa dispersa
Numa manhã mergulhada em brumas,
Como um sopro de vento tempestuoso
Tocando o corpo da rocha insensível.
Andei por entre sendas de tristeza
E nem a natureza me sentiu,
Mas, no final,
Ferida, triste e cansada,
Fechei os olhos ao mundo em redor
Para olhar o nada
E dispersar na morte a minha dor.

Friday, May 04, 2012

Grito


Porque te escondes?
A tua alma sangra de dor e de amargura
E as tuas próprias lágrimas são de sangue,
Mas, ainda assim, tua máscara indiferente
É tudo o que permites que o mundo veja,
Mero vislumbre de algo que não és,
Falso espectro do mundo que tu vês.
Porque não gritas?
Se a tua revolta clama por vingança
E a tua alma destruída anseia pela morte…
Pára de fingir
Que és a rocha que o mundo conhece,
Quando o teu espírito estremece
Ante a memória da dor.
Grita!
Deixa que vejam o que te fizeram,
A torre de agonia que, dentro de ti, ergueram,
O coração quebrado, ferido e torturado
Que se fez sádico
Para não sentir a memória do amor…

Friday, April 27, 2012

Renúncia (I)


Longe da vida vã, do amor magoado
E do eterno silêncio de meus dias,
Renuncio ao meu sonho destroçado
E à memória das minhas fantasias.

Renego a sombra das horas vazias
E a escuridão do um mundo quebrado,
Pois nada me prende às lembranças frias
De uma alma abandonada no passado.

Perdida da memória abandonada
Que criou meus sonhos de alma quebrada,
Rejeito até a mão da eternidade.

Não voltarei a ter vida ou vontade,
Pois, negada a minha própria verdade,
Deixei de ser solidão para ser nada…

Friday, April 20, 2012

Execução


Ela veio, serena e decidida,
Vencida
Pelo desejo de vingança.
Dentro de si, uma negra ânsia pulsava.
O seu coração clamava
Pelo sangue de quem lhe roubara a esperança.
Os seus olhos eram como o gelo, frios,
Vazios
De sentimento ou de piedade.
Não há misericórdia em peito morto,
Nem conforto,
Mas apenas a sua negra necessidade.

Ela surgiu, sinistra e tenebrosa,
Majestosa,
Como a imagem de um anjo exterminador,
Envolta em vestes de um negro soturno,
Nocturno,
Como o silêncio que envolvera a sua dor.
Em seus lábios, um sorriso cruel
Marcava o ódio fiel
Que a acompanhava,
Negro como a missão da sua alma torturada,
Que, nas sombras do nada,
Pelo julgamento supremo esperava.

Soturna e indiferente, de alma morta,
Atravessou a porta
Da negra prisão onde aguardava
A abjecta criatura responsável
Pela dor interminável
Que, há eras infinitas, a atormentava.
A passos lentos, fria e indiferente,
Surgiu, solenemente,
Perante o réu do seu negro julgamento
E, num sorriso de sádico prazer,
Viu-o tremer
Ante a iminência do último momento.

Ela avançou para o seu corpo acorrentado,
Pelo medo amordaçado,
Fraco e imóvel ante a sua vontade.
Sentiu a intensidade do seu medo
E, em segredo,
Amou esse instante de liberdade.
Num gesto violento e revoltado,
Ergueu o rosto quebrado
Cujos olhos a fitavam com temor.
Sentia que o seu corpo tremia
E que esse estranho prazer diminuía
O fantasma da sua própria dor.

Em sádica provocação,
Guiada mais por prazer que por razão,
Aproximou-se do rosto vencido
E, sentindo nele um temeroso desejo,
Selou com um beijo
O seu destino há muito decidido.
Depois, ante o espanto perturbado
Do condenado,
Ela sorriu com sádica expressão,
E, frio como o ódio que a dominava,
Subitamente, um punhal brilhava,
Na sua mão.

Ela sentiu o medo incontrolável,
Interminável,
Da sua vítima há muito escolhida
E um sinistro sorriso demonstrava,
Enquanto observava
A criatura que implorava pela vida.
Depois, num gesto imperioso,
Majestoso,
Silêncio ao seu prisioneiro ordenou
E, olhando nos seus olhos assustados,
Pelo pavor subjugados,
Deixou cair a máscara e falou.

“Pensavas que podias enganar-me
E abandonar-me,
Para depois escapar com impunidade?
Julgaste que eu jamais descobriria
A fantasia
Que me contaste como a mais pura verdade?
Acreditaste que podias iludir-me
E depois trair-me,
Deixando apenas o silêncio em mim,
Mas não! Estavas errado
E és tu, hoje, quem está condenado
Ao mais sinistro fim.”

Ela aproximou-se, enquanto proferia
A sentença sombria
Que destinara à abjecta criatura
Que, face ao medo da dor, da agonia,
Implorava à mulher de pedra fria
Que o poupasse à tortura.
Ela, contudo, fria e indiferente,
Deu um único passo em frente
E sussurrou, ao ouvido do réu:
“ Quero que sofras. Não terei piedade.
Também não a tiveste, na verdade.
Não tens fuga. És meu…”

Num gesto lento, sádico, cuidado,
Ela tocou o rosto perturbado
Daquele que marcara para morrer
E, enquanto sentia a sua agonia,
Sorria,
Preparada para o que decidira fazer.
Subitamente, onde a mão repousara,
O punhal passara,
Deixando um rasto de sangue e de dor,
E ele, sem saber o que sentia,
Gritava de agonia
E puro horror.

Ela sorriu e um riso tenebroso,
Misterioso,
Ecoou no silêncio do lugar.
Depois, num gesto de doce loucura,
Bebeu, qual seiva escura,
O sangue que corria sem parar.
“Meu, até à última gota…”, sussurrava,
Enquanto olhava
O trémulo corpo do prisioneiro,
Que, antecipando uma terrível agonia,
Em silêncio, pedia
À vida que o fizesse morrer primeiro.

Um após outro, frios, premeditados,
Traços marcados
A sangue surgiam no corpo agonizante
Daquele a quem ela entregara a vida,
Para ser traída
Pelo homem que escolhera como amante.
Uma após outra, as horas decorreram,
Mas não esmoreceram
Os gritos da tortura infernal,
Até que, satisfeita, extasiada,
Ela fitou a massa destroçada
Que restava do corpo do mortal.

Ela observou-o, qual deusa indiferente,
E, como um sorriso ausente,
Fitou o seu rosto desfigurado,
Onde corriam lágrimas dolorosas,
Tenebrosas,
Marcas de uma dor sem termo marcado.
“ Não o mereces”, disse, impiedosa
Como uma estátua silenciosa,
“Mas decidi que vou mostrar clemência.
Diz as tuas últimas preces,
Mas se os deuses te derem o que mereces,
Não encontrarás paz na inconsciência.”

Por um momento, um silêncio sombrio,
Sinistro e frio,
Desceu entre a mulher e o condenado,
Que, olhando a sua sádica executora,
Via que a sua hora
Havia, inevitavelmente, chegado.
Depois, num gesto rápido e preciso,
Nada indeciso,
O último golpe do punhal desceu,
Atravessando o peito torturado
Do condenado
Que, num último gemido, morreu.

Ela sorriu, sinistra e tenebrosa,
Misteriosa
Como a noite de imensa escuridão,
Sabendo que esse corpo destruído
Talvez pudesse ter vivido
Se lhe tivesse pedido perdão.
E eis que parte, majestosa e serena,
Sem pena,
Remorso ou qualquer outro sentimento.
Fica para trás a sua história morta.
Há uma nova vida à sua porta,
Um novo futuro… Um novo momento.

Friday, April 13, 2012

Vermelho (II)


Envolvo-me
Entre vultos e cadáveres de passagem,
Mais um corpo
Entre a lascívia dos mortos.

Fez-se orgia de sombra e tempestade
A noite que vela os sentidos,
Preenchendo o espaço
Na aurora de um extático fulgor,
Onde também eu sou corpo desumanizado
A quem o delírio tornou humano.

E os meus sentidos serpenteiam,
Leves,
Na etérea luxúria do ser ninguém,
Como aves feitas de espadas sem rumo
Rasgando os céus
Em fulgurante majestade,
E enrosco-me na trama dos dias,
Suave abraço de soturno amante,
Meu prisioneiro
De sinistra morte sentida em mim.

Penetra-me o pulsar das sensações
Como uma fúria sem voz
Aprisionada nos abismos do meu grito
E o corpo arde em delírios
De insuportável possessão,
Quase como o sangue que jorra
Mais forte
Que todos os ecos que enchem o céu.

Por isso,
Deixo-me tocar
Pelas perversas mãos dos anjos do destino
E envolvo-me nos sons
De uma vida que é já morte,
Na sua lasciva contemplação de corpos,
Mas que,
Como futuro ainda por construir,
Preenche com todas as luzes
A negra noite universal do corpo intacto
Que era meu,
Mas que morreu.

Enrosco-me entre fantasias
E delirantes êxtases de ser,
Mas, no silêncio da soturna infinitude,
Nunca se apaga
O eu do que perdi.

Thursday, March 29, 2012

Vermelho (I)


Sangra-me os sentidos,
Como se fosses noite devastada
Invadindo os silêncios da minha imensidade,
E toca-me a alma
Como mil mãos que deslizassem
Sobre o meu corpo de impenetrável torpor.
Prende os meus gestos
Na mística miragem do azul rasgado
Dos teus olhos cegos
E penetra no mais recôndito de mim,
Qual luz de abismo
Abandonada aos desertos do olhar.

Sente-me
Em cada grão da poeira de existir
E encontra o meu espírito no teu corpo,
Como uma voz que se envolve,
Sem querer,
Na suave sedução dos meus sentidos,
Espelho de uma imagem sem reflexo
Onde me vejo,
Nua de alma e corpo devastado.

Percorre-me
No ausente labirinto dos meus olhos,
Como lábios de morte
Que me envolvessem no seu êxtase final,
Fúnebre essência de um destino
De eternamente anunciada morte,
Prisão infinita de perene adiamento.

Rasga-me as veias
De onde se esvai o fluido dos meus sonhos
E abre aos desertos nadas do meu nada
O secreto sentido do meu ser,
E beija o sangue que sai do meu corpo,
Qual melodia de alma estilhaçada
Feita de miríades de vidro
E escuridão.

Sangra-me cada sopro de vontade,
Cada desejo de indefinição,
Cada palavra que me brota da alma
E se arrasta nas trevas do infinito…

E leva,
Na absoluta submissão do eterno nada,
Aquilo que foi teu, porque roubaste,
A rasgada paixão que condenaste…
A minha redenção…
…que profanaste.

Wednesday, March 21, 2012

À Morte da Musa

Para ti, que ousaste ter asas de fogo e voar até ao rubro sol da inspiração. Que semeaste universos com o ânimo de uma alma erguida ao alto e as mãos manchadas com uma tinta feita do teu próprio sangue. A ti, cujos sonhos o mundo desfez – se sonhos te atreveste a ter – e cuja inspiração desfaleceu nas correntes de uma palavra cruel. Tu que esperaste, mas que nunca acreditaste. Que quiseste, mas que nunca conseguiste… Esta é a tua última história.
No princípio eras tu e não querias muito. Bastava-te um lugar, um olhar atento ao que de ti tinhas para partilhar. Querias somente ser. Ser a voz dos mil mundos que te habitavam, de outras vidas tão longínquas, mas tão tuas… Nasceste para o imaginário com um olhar abrangendo tudo o que querias contar. Mas as portas estavam fechadas e o mundo – o teu mundo – não sabia ser teu.
Esqueceste, então, e seguiste pelo traçado de outros sonhos. Tudo falhou, mas tinhas ainda a força para voltar a tentar. Alimentava-te a esperança de ser, um dia, algo mais, mais que o fantasma de um ideal quebrado, mais que a luta vencida que todos rasgam, mas ninguém vê.
Por mil anos de silêncios andaste por um mundo teu a que não pertencias. E, um dia, a luz da palavra nasceu. Um incentivo só bastou para te iluminar de esperança. Alguém via através das tuas sombras. Ainda estavas lá. Ousaste, então, sonhar mais uma vez e as almas que viviam dentro da tua desabrocharam em cantos e caminhos, aventuras e sonhos que eram, ainda e sempre, tu. Mais uma vez, ousaste ser perante o mundo. Mas o castigo não se fez esperar.
Mãos erguidas clamaram pelo teu sangue. Ferozes gritos exigiram o teu silêncio. E tu, frágil reflexo de uma esperança, tentaste aguentar de pé os golpes com que te feriam, manter a tua voz aberta ao mundo. Mas não tinhas a força necessária – nunca a tiveste. Sangravas o sangue que te exigiam, mas, enquanto esperavas que parasse, já o silêncio se instalava em ti. Também tu conhecias o fracasso. Sabias não haver mais por que lutar.
Voltaste, enfim, as costas a esse mundo onde o silêncio não bastava para sobreviver. Partiste, ciente de que abandonavas a melhor parte de ti, mas incapaz de continuar de pé ante feridas mortais. Longe era o teu lugar, longe de tudo… Só na renúncia poderias prosseguir. Da torre do sonho afastaste os teus passos para receber o beijo do fracasso. E morreste, por fim, para tudo o que te definia.
Hoje, és o nada que sopra nos ventos do adeus, a despedida que nunca dissemos. A história jaz por terra e nós com ela. Fica-nos só o silêncio que aceitámos como mortalha para os desígnios do que fomos. O vazio. O abismo que em nós dilata pensamentos e murmura histórias que nunca poderemos partilhar. Hoje é isto que somos à luz da vida. E a vida… já não mora dentro de nós.
                             

Thursday, March 08, 2012

Pegadas de Fumo

Vulcânicos rubores passaram por esta estrada
De sangue morto
E as margens da última artéria transbordaram
Para lá das muralhas da consciência.
Secreto, o silêncio vogava pelas ondas do mar exangue,
Deixando pegadas de fumo
Sobre os ardentes mantos da aurora boreal.

Longe, a fortuna cantou elegias ao espelho
Da cegueira abençoada
Com o veludo dos túmulos renascidos
Onde a noite pintava cintilações de magia
Sob o manto cruel do despertar.

Solene, a estátua vigia a ruína esmorecida
Nos ossos da catedral,
Fantasmagórico olhar sobre o corpo do templo
Que a si próprio se contempla.
A fusão voltará a lavrar a hecatombe desses corpos
Em ardente sacrifício
E a lentidão dos compassos da última marcha
Voltará a cantar a uma só voz.

E, além do tempo, o grito dos morcegos
Virá para derrubar as tempestades
Na comunhão das muralhas de além-vida.

Thursday, March 01, 2012

Regras

Estende as mãos ao amplexo do nevoeiro
Que vela o soberbo rosto da sarça ardente
Envelhecida por seiscentas encarnações.

No silêncio das trevas que envolvem a mão do deus,
Ele é a esfinge deitada no Sinai,
O esboço esmorecido e suplicante
Que se alonga até ao leito que consagra a divindade
Na saturnina pele dos ancestrais.

É como um grito
O cosmos dos mandamentos traçados na sua voz
De regras e transgressão.

A mão da montanha que desce sobre as efígies
Do povo exilado
Onde ele é líder nas trevas e no porvir
Do fogo que o investiu.

A mãe que chora
Nos olhos do apocalipse que se derrama
Unge as cinzas da criação.

Thursday, February 23, 2012

Comunhão de Corpos

Ilustres desconhecidos,
Galantes demónios fundidos na aurora do além
E uma voz que grita na esfinge dos exilados
A pergunta que procura a voz.

Onde estás?
Enquanto os corvos dispersam oráculos sobre o teu céu
E o feitiço das trevas incendeia a tua morada,
Enquanto a noite se dilata em espasmos enraivecidos
E o silêncio te contempla na mordaça das tuas mãos?
Onde te escondes, lorde protector,
Quando as cinzas do futuro amaldiçoam o teu cabelo
E a eucaristia dos mortos sem nome
Se consuma na cruz da tua pútrida herança?

Silêncio ao céu que responde
Como um véu na consumação dos desejados
Sobre a ruína do presságio que contempla a aurora
No crepúsculo dos céus
E o cântico que jorra nas veias do imaculados
Em réplica à pena primordial.

Estou no caminho do exílio que brotou na voz do abismo,
Na libertação que prende mas não regenera,
E o labirinto é um espelho pendente sobre o teu corpo,
Mas eu já não sei que ausência divaga no meu destino
E perdi-me do caminho para casa.

Friday, February 17, 2012

Liberatrix

E se ela perdesse as flechas da voz distante
E o sorriso dos silêncios
Que dormiam na placidez da aurora
Como anjos no rosário da eternidade?
Se ela apagasse a poesia das horas completas
E fugisse no vazio
Para não voltar a estender os véus do regresso?
E se ela esquecesse o altar onde foi sepultada
E o nada lhe abraçasse a pele
Como ondas de fogo embalando uma estátua de sal
Com carícias olhando os filhos mortos
Na noite das muralhas destroçadas
Pelo cântico de mil soldados sem império?

E se ela morresse na síntese do olvido?

Se os seus lábios se calassem entre a bruma,
Erguer-se-iam memórias dos túmulos esquecidos
E corpos renasceriam de entre as ondas
Para abraçar o murmúrio dos mistérios primordiais.
Cantariam os mortos a memória do seu sangue
Com hinos à austeridade do crepúsculo final.
Sangrariam os dedos da noite em homenagem à hora
Em que a mais divina entidade morrera
E as manhãs desfaleceriam em miragens de eclipse.

E se, ainda assim, o tempo não ouvisse
E a vitória recusasse o calor do seu abraço
Aos exilados de quem ela era rainha,
Nasceriam então asas nas planícies desoladas
E todas as vozes se dariam ao abismo
Para ser, no nada, as armas do seu brasão…

Friday, February 10, 2012

Desafio

Podes dizer ao mundo que não viste dignidade
Nos traços da minha voz
E falar-lhes de silêncios e palavras repetidas
Que outros mil cantaram antes de mim.
Podes erguer-te com a glória do fundamento secreto
Que te apoia sem sequer saber que existes
E invocar as regras da tua divindade
Para crucificar cada imagem que um dia criei.
Podes até invocar perante os altares da justiça
O peso das minhas falhas,
O sussurro vulnerável da minha consagração
E contar que são memórias as fantasias que trago
No sangue que me manchou a breve imagem
De uma pureza para lá da redenção.

O que não podes é calar o grito
Que aflora ao sangue das minhas horas vãs
E silenciar a vida que me invade
Em cada madrugada de palavras.
Podes dizer-lhes que eu não valho nada,
Mas não podes parar a minha voz.

Por isso vem! Invade o que quiseres
E deixa que os teus actos glorifiquem
O nome que tu não tens,
Que a censura que instalaste proclame a insanidade
Da tirania que pretendes em ti.

Mas ouve e sabe que o tempo não morre
E que os deuses verão nascer o dia
Em que o meu nome estará no fim da terra,
Talvez frio,
Talvez morto de renúncia,
Mas capaz de prender nos céus do imenso
A certa glória de não ser como tu.

Friday, February 03, 2012

Finis Dierum

Apaga o meu nome da história deste mundo.
Eu nunca fui ninguém
E as asas que quebraram contra o chão do labirinto
Nunca foram senão vagos implantes
Num corpo que nem sequer era meu.

Nos séculos que passaram sobre a bruma,
Nem as palavras puderam salvar-me
Da vulnerabilidade de um sangue demasiado fraco,
De um nome feito desilusão,
Do silêncio que fui.
Ninguém pôde encontrar traços de império
Na mordaça estilhaçada
Que era afinal um grito moribundo
Na renúncia da figura enjeitada em mim.

Por isso esquece…
Não dês mais tempo a alguém que não merece
Nem os escassos segundos da contemplação de um sonho.
Apaga as horas que o meu corpo percorreu nessa estrada
E deixa que o fim desperte
Como quem nunca viveu.

Exílio, seja… eu mesma renuncio
A todas as ambições que nunca pude equilibrar,
Código que nunca pude cumprir.
Seja apenas a lama a envolver-me os sentidos,
Meu breve apocalipse prometido
Onde nada permite a redenção.

Tuesday, January 24, 2012

Defesa

Olha. Bem sei que pensas
Que nos teus braços repousa o leito da perfeição,
Que és a única voz digna do espanto dos povos
E que trazes nas palavras a dignificação do ser.
Sei que queres ser o látego dos miseráveis,
Apagar da face da terra quem ousou viver o sonho,
Mas que, por ecos ou obras delirantes,
Vê bem onde tu vês insanidade.

Eu sei que outras palavras te repugnam,
Que ofensas plantaste para as destruir.
Vi cair mais que os que tu poderias
Conter na torrente do teu julgamento.

Olha! Eu sou a defesa dos vencidos,
Do sonho que mataste com a tua palavra
E acuso a tua sombra!

Serei a redenção dos que quebraste,
Abrigo para a magia que mutilaste,
Protectorado dos sonhos sem voz.
E tu?
Continua, se queres, a destilar amargura
Na sombra das lições primordiais,
A lançar ofensas sobre os vencidos
Como se fosses o mestre supremo.

Tu não sabes…
Nem todos querem a imortalidade.
Apenas alguns momentos de luz…

Monday, January 09, 2012

Sangue de Oráculo

Esta é a hora
Onde os silêncios se incendeiam
E a profecia proclama entre cinzas e quimeras
O nome dos que morreram entre nós.

Herança
No palpitar do fogo que consome
A aurora dos oráculos distantes
Que foram ancestrais de cada imagem
E progénie das almas
Que florescem ainda em cada traço
Da palavra.

A nossa voz,
O espelho que estrangula o sopro da renúncia
E o pensamento
Nas marés que levaram para o abismo
O turbilhão do tempo.

O adeus, por fim,
À pena erguida em louvor à memória
E o estilhaçar de todos os destinos
No grito do melhor que se perdeu.

Thursday, January 05, 2012

Instantâneo

Hoje é o dia em que não és
Nem estrada em gotas de espelho construída
Nem altar de momentos erguidos ao canto da espera,
Da esfera que dorme escondida no véu do regresso,
Do tempo que dorme no olhar que és dentro do céu.

Nem barco rasgando mares de sangue derramado
Ou veludos de teias ancestrais,
Efémero ritual traçado no soberbo grito
Do orgulho vão sobre a coroa que não tens.
Nem mesmo a razão te assiste
Quando olhas de mais além que o trono que não te pertence
Para crucificar as asas dos inocentes
Que ousaram um sonho para lá do teu comando.

Este é o grito do teu último instante,
O eco da soturna imensidade que rodeia
A funesta criatura que consumiu esses laços de inocência.
Também sonhaste um dia,
Mas não sabes que a execução das horas desse mundo,
Do teu reino de cérebros pululantes
Não sabe de coração nem de alma humana
E é vazio…

Hoje é o dia em que não és…

E só o nada que o absurdo petrificou
Para lá de uma voz cortante, um véu castrante,
Um deserto de vácuo… como tu.