Thursday, October 14, 2010

Chamo-me Ilusão

Chamo-me ilusão
E sou uma estrela perdida entre céus de conforto
E chamas em sóis de terror,
Um rasto de névoa entre as brumas que nascem no exílio
E o fim dos tempo arrastado pela profecia
Dos olhos que um sonho plantou.

Sou um passo feito de esperas,
Um eco de esferas distantes numa canção morta,
A porta da trova que morre,
A lágrima ardente nos olhos do cárcere cego
Onde dormi mil noites
E para dois mil dias despertarei.

Chamo-me ilusão.
Sou grito de um eco plantado em colinas de absurdo,
Silêncio de punhal cravado
Nas entranhas de um plano rasgado em vazios de conquista,
Um nome plantado nas trevas,
Uma esperança em si própria rejeitada
E um espelho tingido com letras de resignação.

Sou um céu de renúncia,
Um corpo deixado na terra do ânimo moribundo,
Da voz que já não projecto,
E os minutos de mil séculos pulsaram sobre o meu sangue
Para apagar a essência
E desfazer na poeira as letras do meu sentido
E criar para mim os ritos de um novo baptismo.

Chamo-me… desilusão.

Wednesday, June 09, 2010

Tributo

Não sei nem se mereço
As breves palavras que o tempo gravou em mim sob o teu nome
Em signos de devoção.
Este estandarte pintado em sombra e sangue
Foi somente de dor
E a madrugada na insígnia dos meus olhos desolados
Não teve mais que um exílio solitário
Para estender em correntes sobre mim.

Hoje o silêncio passou
E, dentro de cada momento, as horas não foram pesadas
Nem eternos os desertos do destino
Que a noite interior plantara no meu lugar.
Foi mais que o vácuo,
Mais que a poeira dos gritos silenciados
E foi por ti,
Pelas mais breves palavras derramadas
No sacrário da ilusão,
Que a mordaça tombou por entre os dedos
E, sob a chuva dos céus agravados,
Um sonho renasceu.

E hoje sou mais que o vulto,
O corvo abandonado ao altar da renúncia
Que se esqueceu sem saber.
Hoje acredito nas tuas palavras
E é sempre em ti que o espelho se revela
Capaz de encontrar mais que o véu que sou.
Sou hoje mais que a sombra no deserto
E a profecia fatal,
Porque os teus braços trazem a promessa
E o sonho adormecido
Pode, enfim, ganhar asas verdadeiras,
Alcançar os muros do impossível
E voar.

Wednesday, May 26, 2010

Certa Amargura

Há uma certa amargura ante os silêncios do infinito
E um grito na eternidade da canção abandonada.
Eles não sabem que sabes que a palavra destruída
Há muito morreu nos braços do teu cântico imortal.

Há uma voz que te grita que nem tudo vale a pena,
Que te enleva no chamado de um olhar para lá do abismo
E tu penas nos segredos de uma eterna despedida,
Fracasso atrás de miséria, depois trevas, depois nada.

Vivem sussurros no alento da deserta catedral
Onde tu e os miseráveis partilham o mesmo exílio
E um deus vigia os teus sonhos de sangue e silêncio e morte,
Evangelhos destruídos nas asas do teu vazio.

Há um cântico na esfera do conflito no abandono
E uma palavra maldita nos confins da tua voz.
“Adeus. Que o tempo te guarde. Fica segura na ausência.
Se alguém tinha de quebrar, fico feliz por ser eu.”

Tuesday, January 19, 2010

Enlevo

E ela sorriu, como se o fogo lhe brotasse no corpo em asas de tempestade, enquanto, sozinha no abraço dos seus desertos interiores, o seu corpo se agitava nas contorções do desejo. Dormia, como um anjo no berço da imensidade, mas, mesmo no enlevo do sono, o seu corpo ainda chamava pelo dele, sempre, com insistência, como se nada mais existisse na sua vida.

Inconsciente de si, procurou com os braços o corpo dele no leito, tocando os lençóis de seda ao invés da pele de veludo, mas sem notar a diversa suavidade do tecido morto em comparação ao tecido humano. E dormiu, sonhando um pouco mais, imaginando que bailava nos seus braços de fogo, como uma gota se sangue que dançasse na língua de um vampiro, na suave dança que funde as almas e os corpos numa quintessência una e contínua, a multiplicidade fundida na unidade do prazer.

Estendeu-se nos braços do sono, enrolando os lençóis em redor do seu corpo, como se fosse ele, o seu amado, o seu amante, quem a enlaçava no seu poderoso amplexo. No sonho, cedeu ao desejo e multiplicou-se na imagem dele, como uma diva sacrificada ao deus solar, oferecida em corpo, alma e coração.

E, quando despertou, o sorriso desvaneceu-se dos seus lábios, ao olhar em seu redor e encontrar a cama deserta. Junto ao seu corpo, apenas a companhia dos rubros lençóis, memória de uma noite de amor que não existira senão na sua imaginação. Na palidez do seu rosto ainda semi-adormecido, as lágrimas despertaram, e os tecidos que haviam sido leito de amores imaginados tornaram-se receptáculo para as lágrimas da desilusão.

Silenciosamente, ela levantou-se, atordoada pela confusa mistura do que fora sonho e do que fora realidade. Algures durante a noite, ele estivera a seu lado, sabia-o. Abrira-lhe a porta da sua casa e recebera-o no seu corpo sob a misteriosa luz do crepúsculo. Mas tudo o que sonhara depois, todo o enlevo que, no seu espírito, fora uma eternidade, não poderia ser mais que a breve ilusão da sua mente embriagada.

Aproximou-se da monstruosidade negra que repousava sobre a cómoda, o velho telefone que mais parecia uma relíquia de tempos imemoriais. Ainda incrédula, marcou o número dele, na esperança, talvez, de ouvir uma explicação para a sua partida e, talvez, uma promessa de regressar. Tudo o que encontrou, contudo, foi a gélida voz da operadora que lhe decretava, sem saber, a sua sentença de solidão. “O número para o qual ligou não se encontra atribuído”.

As lágrimas voltaram, quentes gotas de dor e de revolta que lhe inundaram o rosto com a força de uma tristeza incontrolável. E, naquele momento, ela soube que a sua vida nunca seria mais que aquele sem fim de ilusões e desilusões, de enlevos tecidos na trama da farsa onde, sobre o palco, o pano sempre acabava por cair.

E, novamente, ela sorriu, com o sorriso dos desesperados que contemplam o mais profundo fosso, preparados para mergulhar no abismo do esquecimento. Voltou para a cama. Estendeu a mão para a gaveta da mesa-de-cabeceira, descuidadamente aberta desde a noite anterior, e, na confusão do seu conteúdo, encontrou a caixa dos seus velhos comprimidos, aqueles com que controlava as suas habituais crises de ansiedade. Então, como num ritual sagrado, ela engoliu-os, um a um, como se comungasse do credo do fim dos tempos, e, quando o suave torpor do sono lhe invadiu os sentidos, ela sonhou, pela última vez, com o suave amplexo do seu amante perdido, para sempre perpetuado no toque das últimas trevas.

Sunday, January 03, 2010

Rasgos de Eternidade

A tela nua estendia-se, imaculada, diante dos seus olhos entorpecidos, cansados depois de tantas vezes terem aberto aos homens as imagens que floresciam no seu mundo. Aquele era o seu derradeiro dia, o último tributo prestado pelo seu corpo enfraquecido, e, quase tacteando a paleta e os pincéis que, como se ansiassem pelo seu toque, repousavam prontamente a seu lado, o velho pintor fitava, com olhos de melancolia, o ponto zero do seu último acto criador.

O negro… A nocturna obscuridade das paredes vencidas da imensidade, onde os mártires e os moribundos contemplam, com olhos cegos, o fúnebre esplendor do seu derradeiro momento. A sinistra noite de todos os sonhos e de todos os silêncios, onde apenas o laivos de uma dispersa neblina se atrevem a respirar, na solene noite despida da cintilação das estrelas e do melancólico brilho do luar, como um funéreo cântico de trevas que se elevasse em tributo aos espíritos do outro mundo.

Levemente, o pintor tacteou os pincéis, buscando neles uma espécie de telepatia, capaz de criar na sua mente envelhecida a imagem que procurava. Negro como a sombra que se espraiava nas suas imagens, o vulto da morte parecia já debruçar-se, soturno e silencioso, sobre o seu corpo fragilizado, tocando-o com a carícia do fim dos tempos. Chegava ao fim, pois, o seu tempo, e, quando chegasse ao pórtico do além-vida (se algo existia, na verdade, para além da vida), queria levar nos seus pensamentos a memória daquela derradeira imagem, capaz de reflectir, em sua defesa pelo orgulho e pela inútil vaidade em que vivera, a sua cintilação dispersa entre os rasgos da eternidade.

Púrpura dos quebrados e dos vencidos… O estandarte que se agita nos ventos da tempestade, ao longe, tão distante que as mãos que o procuram não o conseguem alcançar. Da cor dos sacrificados, dos imolados a um destino que, na sua derradeira acepção, não passa de viver e morrer, o estandarte oscila nos braços de um vento agitado, rasgado pelo furor das batalhas vencidas e pela fúria de mil lâminas cravadas sobre os corpos dos derrotados. Púrpura de fogos carbonizados, imolados no altar da derradeira controladora do mundo, capaz de extinguir, como no último tremular de uma vela, o sopro que animava as modulações do pó.

Desenvolvia-se a imagem por dentro dos seus pensamentos e os pincéis agitavam-se nas suas mãos, como se tivessem vontade própria. Queriam criar, imortalizar em objecto as forças que sussurram nos confins da imaginação. E, naquela noite final, fatal como a sombra de um destino iminente, o pintor não negaria aos instrumentos da sua obra o mais profundo desejo dos seus corações de madeira. Antes que a mão do silêncio o derrubasse, o seu legado deveria ficar eternizado perante os olhos do mundo, como ele sempre sonhara, caminhando incessantemente pelas sendas do orgulho, sem alcançar mais que as feridas que o consumiam. Ali, contudo, enquanto a imagem ganhava vida na sua totalidade, sabia que não seria desprezado, porque a sua criação, a última, a definitiva, não serviria os olhos do mundo, mas os da própria vida. Talvez, os do próprio Deus…

Escarlate… O trono rubro de sangue, abandonado debaixo dos céus à espera do regresso do seu rei absoluto. Traçado em petrificadas línguas de fogo, como se o fulgor do infinito oscilasse na nitidez daquele vazio morto, onde a suprema figura do seu vulto imobilizado parecia reinar em nome do seu ocupante. Trono vazio, ainda, esquecido sob a iminência da tempestade, mas sempre fiel e à espera, sempre vazio na sua imobilidade, preso pelas correntes de uma essência moribunda, até que o manto do infinito se dignasse, um dia, roçar a rubra pedra do seu corpo ofertado em devota imolação.

Um vago esboço de sorriso, pétreo como a sua própria existência, aflorou aos ressequidos lábios do pintor. Tinha, agora, uma imagem perfeitamente nítida vagueando por entre os labirintos da sua mente, um cenário capaz de tocar até o coração dos anjos, talvez, mesmo, o dos deuses conhecidos e desconhecidos. Faltava-lhe, ainda assim, um fragmento de brilho que completasse a sua derradeira criação. Um traço, por mais simples que fosse na sua timidez, que lhe reflectisse a identidade nas brumas da sua mais negra hora.

A foice… O prateado fulgor do instrumento de morte depositado ante os pés do trono, como se oferecido por mãos invisíveis ao espectro de um senhor também inalcançável. O braço que cortava as ligações do inefável, separando a mente desperta do espírito eternamente adormecido, a mão da imensidade descida à voz dos reinos inferiores. Serva da eternidade e senhora da vida, a invisível mão da morte prostrada perante o imortal. Cruzada sobre o chão obscurecido com as sangrentas manchas que lhe marcavam o toque, vermelhas como a tímida estrutura do pincel que, quebrado, se enlaça com o corpo da alma.

Uma breve lágrima brotou no azul apagado dos olhos do pintor, enquanto contemplava, no silêncio do seu momento criativo, quase como se lhe fosse permitido ver, pela última vez, sem barreiras nem limitações, todo o obscuro brilho da sua derradeira criação. Talvez, depois da partida, viesse a sentir saudades do mundo que, dentro de momentos, deixaria, mas, apesar do medo e da relutância, sabia que, do alto da eternidade ou dos confins do abismo, os seus olhos nunca deixariam de velar pelos seus herdeiros, filhos de tela e de tinta, mas sempre infinitamente amados. E aquele quadro, aquela última imagem, traçada em si e por si, com o sangue de todos os seus dias…

Este é para ti, morte. É teu. Agora podes vir buscar-me.